Mestrado aprofunda estudo sobre presença de teoria eugenista nas práticas médicas atuais

Analisando obra de Renato Kehl, médico entusiasta da eugenia, pesquisadora investiga a influência dessa vertente ideológica na sociedade atual

Eugenia orientava o que se entendia por progresso, cuja causa limitava-se ao âmbito genético, ignorando qualquer influência do processo histórico. Reprodução: https://upload.wikimedia.org

Por Gabriel Campos – gcampos@gmail.com

O movimento eugenista apareceu pela primeira vez no começo do século 20 e teve importante influência nos estudos médicos a partir de então. É baseado na teoria da eugenia, que prega melhorar a raça humana através da sofisticação das características genéticas de determinada população. Muitas vezes, se colocava como a principal medida de combate às mazelas de um determinado país, as quais seriam causadas por aspectos biológicos considerados negativos.

Buscando entender proliferação do movimento no Brasil, a pesquisadora Tamara Prior, em sua dissertação de mestrado pela Faculdade de Medicina da USP, investigou essa prática e a atuação de Renato Ferraz Kehl, médico paulista de grande importância para a divulgação das ideias eugenistas no País. Entusiastas dessa corrente ideológica a viam como um aperfeiçoamento da espécie, e como a única saída para o fim dos problemas sociais. Assim, aplicavam sobre a hereditariedade conceitos deterministas, classificando e hierarquizando os indivíduos de acordo com as características que consideravam positivas ou negativas. Reivindicava-se também uma suposta legitimidade para definir aqueles que seriam merecedores ou não de certos direitos, através de um sistema que ultrapassava os laboratórios, até chegar à determinação no modo como cada pessoa poderia viver, ou ainda, na formulação de políticas públicas. A eugenia orientava o que se entendia por progresso, cuja causa limitava-se ao âmbito genético, ignorando qualquer influência do processo histórico.

“Falar em melhoramento da espécie pode parecer algo pleno de boas intenções, como a promoção da saúde, mas a história nos mostra o oposto: os movimentos eugenistas sempre partiram de perspectivas gravemente intolerantes e utilitárias sobre a humanidade”, comenta Prior, em entrevista concedida.

Em seu estudo, a pesquisadora busca compreender os péssimos índices sociais brasileiros e a impotência em agir contra eles, tendo como base o estudo sobre o médico Renato Kehl. Para ela, estudar o passado pode contribuir muito para nossa compreensão de problemas atuais: “Vivemos uma profunda desigualdade, sobretudo no acesso aos cuidados em saúde, e achamos isso natural, como se algumas pessoas fossem naturalmente merecedoras e outras não. Naturalizamos a fome cinicamente como uma consequência natural de luta pela vida”, explica Prior. “Pensei em uma pesquisa que contribuísse para compreendê-lo [Renato Kehl] sob a luz do presente. Isso nos ajuda a compreender a nós mesmos. Especificamente, este tipo de reflexão é essencial para pensarmos os rumos das práticas médicas no Brasil e no mundo, questionando se estamos visando aos direitos civis coletivos.”

Através de uma análise histórica do crescimento eugenista, com guias teóricos como Michel Focault, Carlo Ginzburg, Bruno Latour e Arthur Herman, Prior notou como essa teoria está enraizada na nossa cultura e como condiciona, negativamente, determinados comportamentos sociais ou atuações médicas: “Na teoria, alega-se que a eugenia não é mais praticada, mas, na verdade, tropeça-se em mortos sem atendimento na ala pública de hospitais que estão logo ao lado de alas privadas. É um problema que existe, que tem explicação e precisa ser enfrentado”, diz a pesquisadora.

O processo histórico está presente na medicina e compreendê-lo é potencializar a capacidade de associar práticas médicas a um determinado segmento político ou ideológico, ou de relacionar fenômenos que a influencie no seu cotidiano. A tese de Tamara Prior vai de encontro a esse princípio, justamente para tratar a presença da história no âmbito científico e social de forma intelectualmente responsável. “Creio que as principais conclusões que a pesquisa me permitiu foram tanto enxergar algumas permanências deslocadas de fundamentos eugenistas, como perceber que essa tal eugenia carrega em si uma noção própria da História. Noção pautada pelo conteúdo das células germinativas dos indivíduos que constituem”, conclui.

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